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Número Especial

 

 

RETC 01 (Ano I - VOL I) – 1º Semestre de 2007 – ISSN 1981 5646
 
ENTREVISTA
 
 

Mário Jorge Pires


Graduado em História (FFLCH), Mestre e Doutor pela ECA/USP, Mário Jorge Pires tem vinte e cinco anos de carreira como professor na USP, ministrando regularmente cursos de extensão, cursos de especialização na FIPE e no GESTUR. É autor dos livros Raízes do Turismo no Brasil e Lazer e Turismo Cultural. Nessa entrevista ele trata da sua carreira, sua visão sobre o Turismo Cultural e também do seu mais novo livro: Sobrados e Barões da Velha São Paulo.


Como começou a sua trajetória intelectual?


MJ: Sou formado em História pela USP e, terminado o curso de graduação, não havia espaço para aquilo que pretendia trabalhar dentro da área da História – que é uma aplicação prática da História. Havia na época algumas linhas de pesquisa que não me interessavam, como, por exemplo, demografia histórica. Muito menos história do movimento operário no Brasil. Fiquei sabendo que no curso de Turismo havia a disciplina Elementos Históricos no Turismo. Entrei na ECA como funcionário e, talvez seja uma questão de destino: aquela história de ser o homem certo no lugar certo. Quem ministrava essa disciplina era a professora Mirian Rejowski. Ela ficou grávida e precisou de alguém para substituí-la durante o período de licença. Posteriormente, dei aula de graça na USP por quatro anos, antes da minha contratação. Já monitorei mais de cem trabalhos de conclusão de curso em Turismo e tenho dezessete mestres formados com a minha orientação.


Na Semana de Turismo da ECA/USP o senhor foi mais aplaudido que os palestrantes. A razão dessa empatia está na dedicação para formação dos turismólogos ecanos?

MJ: Acho que isso não é tudo. A parte principal é que gosto muito de dar aula. Dou aula por que gosto de dar aula. Não foi uma profissão que eu escolhi por falta de alternativa. Mesmo porque, vim da iniciativa privada. Trabalhei muito tempo em banco, em carteira de câmbio, onde poderia fazer uma carreira até brilhante, visto que a carteira de câmbio era algo muito promissor no Brasil. Mas não era o que gostava de fazer. O que eu gosto é de palco! Tanto que prestei exame pra EAD, em 1971, e entrei. Mas daquele ano em diante também já não deu mais pra fazer EAD. Então, o palco acabou sendo a sala de aula. Gosto daquilo que eu estou falando, gosto de encenar, gosto de fazer caretas, e, na USP, até que nem faço tanto isso. Quando ministrava palestras nos cursos de guias, eu me fantasiava. Uma vez fui de demônio e na outra de Mickey Mouse.


A orientação do Prof. Virgílio Noya Pinto o influenciou bastante? Como era a sua relação com seu orientador?

MJ: O professor Virgílio só falava calmamente, nunca alterava a voz e minha relação com ele era excelente. Tanto que fiz o Mestrado com ele e não tive dificuldade nenhuma de entrar no Doutorado. O professor Virgílio era uma pessoa extraordinária, a quem devo muito. Em períodos difíceis da minha vida, ele não foi apenas orientador. Ele foi orientador, amigo, conselheiro ... tudo. E me deu uma força muito grande. Numa época em que não havia concurso na ECA para entrar na pós-graduação, nem o departamento de Turismo possuía pós-graduação ligada à área de Turismo – nem havia vaga pra isso –, ele pegou um desconhecido. Na verdade, eu era um desconhecido. Na maior parte, os orientadores pegavam pessoas que já vinham trabalhando com ele há muito tempo. Mas não pude fazer o meu mestrado exatamente na área de Turismo. Tive que fazer em "Comunicação Não-Verbal". Tanto que o meu Mestrado, agora publicado, é um livro de Comunicação Não-Verbal que mostra a relação entre casa e morador, o que a casa diz a respeito do morador. Existe uma relação entre aquilo que ele constrói e aquilo que ele pensa? Essa é a dissertação de Mestrado. O professor Virgílio estudou com Fernand Braudel, na Escola de Altos Estudos da França, foi amigo do Frédéric Moreau, então... eu me orgulho muito de ter sido orientado pelo Virgílio.



Percebe-se nos teus escritos um traço de historiador, bem diferente daquilo que se lê quando o texto é de um turismólogo de origem. Até mesmo o título do livro Raízes do Turismo no Brasil é um diálogo com o título de um livro do Sérgio Buarque de Holanda. O senhor pode comentar esse assunto.

MJ: É sim. Na verdade, um dos livros que mais me fizeram a cabeça foi O Problema da Descrença no Século XVI: a Religião de Rabelais, do Lucien Febvre, onde mostra que era impossível não ter crença no século XVI, porque toda a vida cotidiana, era pautada pelo sino dos campanários das igrejas. Esse tipo de historiografia me fascinou, se comparando aos outros dogmáticos. Estes só falavam em modos de produção, em forças produtivas, em classes opressoras e classes oprimidas – foi isso que eu aprendi na USP. E o Lucien Febvre, na década de 1920 escreveu uma obra dessa magnitude. E o segundo livro que mais me chamou atenção, em toda a Literatura e a bibliografia ligada à História, foi o Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda. Eu creio que é um livro que honraria qualquer universidade do mundo. Me chamou muito a atenção porque mostra o que é ser brasileiro, quem é o brasileiro. Mostrou muito mais que o antropólogo Roberto DaMatta. Este não chega aos pés do Sergio Buarque de Holanda com o livro O que faz o Brasil, Brasil?. Não chega. O Sérgio Buarque foi mais fundo. Muito mal compreendido por parte dos historiadores atuais, que dizem que o brasileiro não é um homem cordial. Mas, com certeza as pessoas que falam isso, não leram com atenção o livro Raízes do Brasil, porque o próprio Sérgio Buarque de Holanda, quando diz "o homem cordial" ele não está dizendo especificamente do homem afável, daquele que dá tapinha nas costas e vai tomar cerveja no bar, mas o homem cordial ligado ao coração. Você pode ser cordial tanto na amizade quanto na inimizade. Na verdade, o que ele quis dizer com homem cordial é "homem passional". É aquele que tem grandes paixões, tanto para o bem quanto para o mal. Se tem uma campanha a partir de uma desgraça qualquer, de uma calamidade pública, o povo brasileiro é muito dadivoso - e faz isso.




No seu livro Lazer e Turismo Cultural o senhor trata num texto polêmico sobre a relação entre o Turismo e o Museu. Como o senhor observa essa relação atualmente.

MJ: Acho que há um preconceito muito grande com relação ao Turismo, principalmente ao Turismo Cultural. Porque, normalmente os museólogos acham que o turista não está interessado em conhecer o museu, ele quer apenas transitar. Mesmo que seja para transitar, acho que alguma coisa fica. Então, porque não dar essa oportunidade de alguma coisa ficar pra esse visitante também.


Ou despertar alguma coisa...

MJ: Ou despertar alguma coisa no interior desse visitante... Então, creio que hoje os museólogos, na verdade, estão despreparados para lidar com a visitação espontânea. Não querem visitação espontânea. Por que? Porque a visitação espontânea põe a nu a incompetência. Não têm competência de transformar o museu em algo atrativo. Porque eles não aprenderam interpretação. Ou seja, tornar palatável a informação. Eles colocam nos painéis e nas peças apenas a informação, não a interpretação da peça. E é isso que faz com que o museu seja tão depreciado. E com isso, também o próprio visitante começa a ter uma certa animosidade com relação ao museu. Por que o museu mais visitado do Brasil é o Museu Imperial? Porque ele está repleto de material simbólico: tem a coroa do Imperador, tem os aspectos relacionados a casa de veraneio do Imperador. Uma das peças mais visitadas do Museu Paulista do Ipiranga é a espada do Tobias de Aguiar, o patrono da ROTA: "Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar". Então, tem um caráter simbólico. O museu tem que pegar o visitante pela emoção. Pegando pela emoção, aí se pode transmitir um conhecimento que vai mais além da emoção. Mas querer pegar logo de início pela razão, impossível. É negar o homem total da interpretação. Vejo também que, eles dizem que não, mas eu vejo que não é só o museólogo. Também os gestores dos museus. A verdade é que eles têm um compromisso pedagógico, mas confundem compromisso pedagógico com alguma coisa pouco palatável do ponto de vista da visitação daquele visitante comum. Nem todos estão interessados em ter uma fruição mais profunda do museu. Agora, acho que isso deve ser respeitado no visitante. Se ele não quer uma fruição mais profunda, mas que seja rasa, antes rasa que nenhuma. É isso que eles não entendem.


Antes rasa do que nenhuma. Percebem-se nos gestores e museólogos um pensamento ao contrário do campo da Economia. Na Arte, se pensa no sujeito que “se vendeu” ao sistema quando ele realiza o mínimo para adequar o museu às necessidades da visitação. É nesse sentido que vem parte das suas críticas?

MJ: Eu acredito que sim para boa parte dos museólogos e dos gestores de museus. Mas tem uma parte que é a parte ressentida, quer dizer: "esse se vendeu", mas diz isso porque ninguém quis comprá-lo. Então, por ninguém ter querido comprá-lo, ele tem um ressentimento com relação ao mercado também.


O Turismo Cultural pode servir como instrumento educacional de um povo?

MJ: O Turismo não pode ser massificado. Todo o Turismo Cultural necessita de algum preparo. E acho que esse é o grande desafio do século XXI, do Turismo. É preparar o turista para as destinações, não apenas preparar as destinações. Isso foi muito falado no século passado, no século XX: "preparar as destinações para receber o turista". Hoje, nós precisamos ir mais além, nós precisamos preparar esse turista para visitar as destinações também. Por que? Porque se o turista vai obrigado, se vai pela escola, a fruição vai ser quase nula. O Turismo Cultural necessita de um preparo, de um curso de sensibilização antes da sua prática. E, infelizmente, isso não tem sido dado. É aquele caso que eu costumo contar de Ouro Preto, no Museu da Igreja do Pilar, onde tem uma reconstrução da urna funerária das exéquias do Rei Dom João V, com uma almofada roxa e um crânio por sobre a almofada. E os guias estavam explicando todas as coisas a respeito do museu. Teve uma menina de um curso superior de Turismo que disse assim: "ah, não quero saber de nada do que está aqui, nada de nada me interessa, eu só quero saber de quem é essa caveira aí"... Nota-se que ela não tem preparo nenhum pra visitar um museu. Mas também não foi dado nenhum preparo pra ela. Então, é também um desafio preparar o turista para as destinações. Esse é o grande desafio. De que forma se faz? Se faz através da escola.


 

“Se um museu ou localidade histórica consente que apenas um restrito grupo de especialistas ingressem em seu espaço sacrossanto, que diferença há entre eles e os gabinetes de raridades do período medieval?”
Lazer e Turismo Cultural, p. 42



Por que sua Dissertação de Mestrado só foi publicada agora?

MJ: Eu acredito que todo livro tem o seu momento de sair. Na época, ofereci o “Sobrados e Barões” para todas as editoras do Brasil. Nenhuma se interessou. Não havia ainda a idéia de culto à história de São Paulo. Quer dizer, se hoje nós reclamamos da falta de livros a respeito da história de São Paulo, há vinte anos atrás era muito pior. Qualquer livro de história de São Paulo era considerado coisa de sebo, livro que não era pra ser publicado. Todas as editoras vinham com a mesma desculpa: "isso não é um livro vendável". E, felizmente, o "Sobrados e Barões", mesmo antes do lançamento, já está vendendo bem. Então, mostra que o momento dele chegou. Talvez ele esteja pegando um pouco o vácuo também desse ano que foi a comemoração dos 450 anos de São Paulo.


O que levou o senhor a pesquisar esse assunto?

MJ: Eu tinha muita curiosidade de saber o que faz a elite ser uma elite. Sempre tive essa curiosidade e sempre li muitas biografias. Sou fascinado por elas. Não entendia direito porque que uns vão pra frente e outros não vão. Por que uns são tão talentosos e não chegam e outros chegam. Essa era uma curiosidade que vem de longa data. Eu passava pela Avenida Paulista e cheguei a fotografar boa parte dos casarões, ainda deu tempo de fazer isso antes das demolições. Eram palacetes maravilhosos. Era inimaginável alguém com um poder e dinheiro suficientes pra construir um casarão daquele tipo. Então, o que ocorre, quando eu digo isso na introdução do livro Sobrados e Barões da Velha São Paulo, quem eram essas pessoas? Por que chegaram à Avenida Paulista? Com isso eu fui retomando essa idéia, e claro, tem a ver também o que faz a elite ser elite.


No livro Sobrados e Barões da Velha São Paulo há uma imagem de um sobrado ao lado de uma casa simples. Lembra o Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre. É antigo olhar a miséria ao lado do luxo?

MJ: Isso é antigo e as elites sempre foram fugindo do comércio ou da popularização do bairro. Isso ocorreu primeiramente no centro de São Paulo, no triângulo das ruas XV de Novembro, São Bento e Direita. Com o avanço do comércio, a elite mudou-se para a região da Santa Efigênia. Novamente por causa do comércio, mudou-se para o primeiro bairro planejado, que foi Campos Elísios. Depois, como é uma baixada e havia problemas também com transmissão de doenças, essa elite mudou, poucos anos depois, pra Higienópolis, justamente porque havia os tratados de higiene. Tratavam de quanto uma casa deveria receber de insolação por dia e tudo, etc. E não é por outro motivo que Higienópolis tem esse nome. Higienópolis vem de higiene. Havia uma verdadeira loucura por casas ensolaradas no período. E é por isso que surgiram esses bairros. Mas é muito curioso observar numa das fotos o sobrado do Barão de Tatuí do lado da casa de um alfaiate. Mostra que, naquele tempo, nunca a elite se diferenciava por redutos específicos. Ela, na verdade, estava disseminada pelo centro de São Paulo. E a idéia de bairros de elite surgiu no bojo da Segunda Revolução Industrial, na Inglaterra, onde fizeram os bairros dos grandes industriais. Então, naquela época tinha uma elite que freqüentava a Europa. Muitos membros da elite ficavam seis meses na Europa, todo ano, onde se dizia que em Paris a vida era mais barata do que em São Paulo. E essa elite foi pegando os hábitos de fazer redutos específicos para morar. Atualmente, são verdadeiras bolhas. Quando a gente pega os bairros residenciais com guarita, esses condomínios fechados, eles são verdadeiras bolhas que não se misturam com o restante da cidade, não se integram com o restante da cidade. Isso é uma coisa extremamente perigosa em termos de futuro. Aonde nós vamos caminhar?


 


O senhor registra somente três seges na cidade, na metade do século XIX. Os ricos de São Paulo eram uma elite com hábitos muito simples se comparado com o poder da sua riqueza?

MJ: O paulista sempre foi muito austero, se comparado com aquele que pertencia à elite no Rio de Janeiro. E mais ainda com relação a Salvador. Sempre foi muito austero. Então, essa austeridade é que permitiu o início de uma distinção de São Paulo com relação ao resto do país. Por exemplo, enquanto o Vale do Paraíba gastava todo o dinheiro em suntuosidade, o paulistano (hoje chamado paulistano), aquele de família tradicional, tinha sempre uma austeridade incrível. Bem dizer, quando a gente for pensar que a primeira casa de luxo em São Paulo só surgiu em 1884, percebe-se que isso é muito tardio. Em Salvador, uma família da elite, tinha quatro ou cinco pavimentos numa edificação, para colocar a família e todos os agregados. Isso era inacreditável. Em termos de São Paulo, as casas eram muito simples, muito austeras.


A Avenida Paulista é o local dos imigrantes enriquecidos. No conto “Armazém Progresso de São Paulo”, um texto do Brás, Bexiga e Barra Funda, do Alcântara Machado, o tema apresentado é o comerciante que vai se enriquecer e já visualiza o local da avenida para onde irá se mudar. Qual que é a origem dessa idéia de que na Av. Paulista moravam os barões do café?

MJ: No meu entender, é a partir de um equívoco. Esse equívoco pegou inclusive o mundo acadêmico, que diz o seguinte: aqueles que estavam se beneficiando, de alguma maneira da economia cafeeira eram, por conseqüência, vinculados ao mundo do café. Mas nós não podemos chamar duas coisas diferentes pelo mesmo nome. Os barões do café, a historiografia já aponta, são aqueles que receberam título do Dom Pedro II, por ter grandes extensões de lavouras de café e tinham que constituir um dossiê. Na verdade, os títulos não eram comprados. Para fazer esses dossiês, tinham que constar obras às Santas Casas, construção de escolas, de liceus, orfanatos, e, evidentemente, na época também eram comuns grandes doações à Igreja, etc. Faziam um dossiê dessas atividades que depois era analisado pela nobreza antes da nomeação do título pelo Imperador. As possibilidades de títulos eram inúmeras. Então, esses sim eram os barões do café que a historiografia aponta, os que recebiam os títulos nobiliárquicos. Por analogia, se dizia que aqueles que se beneficiaram da economia do café, que construíram suas casas na Avenida Paulista, também eram. Mas, se a gente for pensar dessa maneira, toda a cidade estava sendo beneficiada pela economia cafeeira. Então, por que só os barões do café, num sentido mais metafórico, deveriam morar na Avenida Paulista? Deveria ser de toda a São Paulo, já que toda a cidade estava sendo beneficiada pela economia cafeeira. E pelo fato do café ter propiciado a indústria também, mas isso já na terceira e quarta gerações dos pioneiros que empreenderam as fazendas de café. Esses sim, de alguma maneira, enveredaram para indústria. E alguns moraram na Avenida Paulista, mas já estavam muito longe de serem barões do café. Eram pessoas que tinham diversificado o capital de tal maneira que o café nem era mais a fonte de renda principal.


Muito obrigado Prof. Mário Jorge pela sua entrevista. Desejamos muita sorte para mais essa publicação.

MJ: Muito obrigado. Eu que desejo sucesso para o site e para a Revista Eletrônica.

 

 

Entrevista realizada em novembro de 2006

 

Responsável:

 

Prof. Dr. João Batista Neto
ECA/USP
Editor Executivo da RETC

 

jbnetousp@gmail.com

 

Revista Eletrônica de Turismo Cultural
Email: jbnetousp@gmail.com